“Muitas vezes já ouvi as pessoas dizerem que não gostam dos mitos de certas deusas celtas porque elas são mães más. Maltratam seus filhos, não os aceitam, perseguem eles e chegam até a querer matá-los. Esse pensamento me diz mais sobre essas pessoas do que sobre os mitos. Me mostra claramente que nos voltamos aos deuses esperando algo diferente do que o que vivemos na sociedade humana. Que o fato deles serem divinos os farão piedosos e condescendentes, o que me parece muito semelhante a idéia cristã de divindade. Ao contrário, do que as pessoas possam buscar na religiosidade cristã, a relação com os deuses pagãos é um reflexo da sociedade que vivemos e não uma fuga dela.”
Eu escrevi o trecho acima para o texto de introdução do projeto “30 semanas para Cerridwen”, uma série de textos que postei sobre essa deusa em meu blog pessoal, e gostaria de começar por ele porque ele traz três considerações muito importantes para o assunto que vou tratar aqui hoje. Primeiro que mesmo enquanto pagãos nós vivemos em sociedade e ela nos afeta numa proporção que as vezes não temos real percepção disso, logo recebemos muitas informações que vão construindo nossa forma de pensar e nosso caráter sem termos uma dimensão profunda e consciente disso. Precisamos ter em mente que o cristianismo está tão entranhado no pensamento social que vemos tudo de uma maneira dicotômica, uma luta entre bem e mal, nós contra eles, opostos que precisamos escolher um lado para viver.
A fé druídica não comunga dessas idéias, os opostos existem mas eles sempre são mediados por um terceiro ponto: o equilíbrio. Viver escolhendo entre opostos não traduz a vivência do druidismo, é uma visão de mundo cristã e é preciso olhar bem para nós mesmos a fim de identificar e transformar essa forma de ver o mundo que nos foi introjetada. E em terceiro lugar, é preciso que seja entendido que enquanto pagãos nós precisamos ser atuantes na sociedade. Passividade e submissão também são conceitos cristãos e sociais extremamente arraigados e sair desse lugar comum e ser ativo e engajado na sociedade defendendo causas e protegendo oprimidos, lutando contra opressores, é missão dos druidistas, e dos pagãos em geral, que tanto sofreram por serem minorias. A tríade druídica mais aclamada : “Curar a si mesmo, curar a tribo, curar a terra” nos coloca num lugar de atuação, de busca constante e não de esperar que outros façam por nós.
O feminismo é a luta social por direitos iguais, o que significa que todos devemos ser respeitados enquanto seres humanos, independente de qualquer coisa que possa nos distinguir. Ter uma postura feminista implica justamente em lutar ativamente para mudar a sociedade ao nosso redor, para que ela se torne melhor para todos, reconhecendo o machismo em nós e nos outros e confrontando as atitudes e situações machistas. O feminismo e a espiritualidade pagã precisam andar de mãos dadas, afinal cultuamos deusas e elas podem ser vistas como arquétipos para todas as mulheres. Desrespeitar uma mulher por ser mulher não parece coerente quando se busca honrar deusas e estabelecer afinidade com elas.
Inclusive muito do conhecimento que temos hoje sobre paganismo, bruxaria e mitologias antigas foi criado ou redescoberto por autoras e autores influenciados pela Segunda Onda do Feminismo, a partir de 1960, quando as mulheres começaram a questionar seu papel social e entre esses questionamentos se perguntaram qual o lugar que existia para elas nas religiões predominantes. Em 1970 o movimento da “Espiritualidade da Deusa” já desenhava seus primeiros passos e em 1978 o ensaio “Why woman need the Goddess” de Carol P. Christ foi amplamente reproduzido e diversas publicações e revistas voltadas para o tema começaram a surgir. A busca por uma religiosidade feminina impulsionou pesquisas em diversas áreas como antropologia, arqueologia e religião sendo Marija Gimbutas, arqueóloga lituana a precursora dessas pesquisas. Na área da religiosidade é inegável o papel de Starhawk e Z. Budapest nesse período de construção de uma espiritualidade feminista.
Não pretendo me estender muito nesse texto, mas recomendo a você que se diz identifica com paganismo, bruxaria, druidismo e demais temas da espiritualidade que se aprofunde na história do que você estuda. Se você ainda não se chama de feminista, estude a história do feminismo. Estude a história das suas próprias deusas de culto e perceba o quanto a cultura dominante, patriarcal e cristã influenciou sua maneira de buscar a espiritualidade, como ela lhe é ensinada e qual o papel que é reservado para você nesse contexto. Do meu ponto de vista, enquanto druidesa e pesquisadora sobre os celtas e druidismo, não posso nunca deixar de observar o quanto os mitos das deusas celtas possuem um pesado verniz cristão que talvez me impeça de conhecer essas deusas em toda sua magnitude e explendor. Ao mesmo tempo sou forçada a ser cada vez mais ativista do feminismo quando vejo nos mitos as deusas sendo estupradas, abusadas, agredidas, ignoradas e silenciadas. Se fazem isso com as deusas, o que acontece conosco, mulheres humanas no nosso cotidiano?
Beijo no coração.
Máh Búadach
Druidesa da Tribo do Caldeirão das Ondas (Salvador/BA) e pesquisadora da cultura celta e do Druidismo.
O Livro de Buadach
https://olivrodebuadach.wordpress.com
Espiral das Deusas Celtas
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